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28/04/2003 Undime

O MST ensina com arte

Nas escolas do MST, que em geral são organizadas nas melhores edificações dos assentamentos ou nas melhores tendas nos acampamentos, a foto de Paulo Freire é pendurada com respeito. A despeito do esquecimento que esse educador vem sendo gradativamente condenado no Brasil, os que têm consciência política valorizam suas idéias e obra em todo o mundo.

Nos Estados Unidos, se atribui a Paulo Freire a raiz da Pedagogia Questionadora e da Pedagogia Cultural que a vanguarda da educação americana vem desenvolvendo. Foram os educadores questionadores e os adeptos da Pedagogia Cultural que fizeram um dos mais significativos protestos contra a Guerra do Iraque. Convocaram a população para ir aos museus que têm Arte da Mesopotâmia, Arte Sumeriana, Arte da Babilônia e da Caldeia, enfim, exemplares de Arte Antiga da região hoje denominada Iraque, armada de papel, prancheta e lápis para fazer desenhos de observação nas galerias. Estão construindo um site com os resultados das visitas.

A desvalorização de Paulo Freire aqui começou quando ele ainda vivia, por meio da instituição educacional mais importante do Brasil, o Ministério da Educação e do Desporto (MEC). Para planejar os Parâmetros Curriculares Nacionais contrataram um educador espanhol, que havia fracassado ao desenhar o próprio currículo nacional da Espanha, deixando de lado a extraordinária experiência de reorientação curricular feita por Paulo Freire/Mário Cortela na Secretaria Municipal de Educação da capital de São Paulo.

Ainda bem que a Secretaria paulistana contratou alguns educadores já aposentados, que participaram da inspiradora campanha de Reorientação Curricular Freire/Cortela, para tocarem agora os trabalhos de uma revisão curricular atualizadora. Isto é um belo exemplo de respeito à experiência passada e de valorização do trabalho que deu certo. É graças ao trabalho de Paulo Freire, apesar da descontinuidade posterior, que os professores da rede pública municipal são considerados até hoje os mais bem preparados e mais questionadores do país.

Penso que os namoros do MST com a arte têm não só a influência de Sebastião Salgado, mas também de Paulo Freire. O grupo de Artes era o maior da equipe de Reorientação Curricular de Paulo Freire e seu projeto educacional foi o que no Brasil mais espaço deu à arte.

Ainda em 1995, líderes do assentamento de João Câmara, no Rio Grande do Norte, procuraram a Escolinha de Arte Newton Navarro, em Natal, pedindo professores para implementarem com eles um programa de arte na sua escola. A Escolinha é uma das poucas remanescentes do Movimento Escolinhas de Arte de Augusto Rodrigues, que chegou a ter 32 unidades no Brasil e uma no Paraguai, criada por Lívio Abramo.

Wandecí de Oliveira Holanda, ex-aluna minha, comandou a equipe de professores que dialogando com os líderes do assentamento levantou as necessidades do grupo de adolescentes e crianças com o qual iam trabalhar. Perguntei a ela o que os pais esperavam do ensino da arte. Ela me contou que uma das mães lhe dissera : "Sei que arte é coisa de rico, mas eu quero para meu filho".

A cidade de João Câmara tem um dos menores índices de desenvolvimento humano do Brasil. Apesar disso, o trabalho foi muito bem sucedido. Fizeram teatro com Lenilton Teixeira e Edson Moura, dois dos melhores professores de teatro do Brasil. Todos costuravam - meninos, meninas, mães e professores - para fazerem os figurinos das peças, aproveitando roupas velhas. O professor de música trabalhou com um sanfoneiro do assentamento e usaram o sistema de alto-falantes destinado à informação sobre os problemas comuns, desta vez para divertir a todos. Os professores de Artes Visuais os ensinaram a reciclar papel por meio de um projeto interligando arte e ecologia.

Enfim, formaram um grupo de adolescentes multiplicadores das experiências e conseguiram levar projetos semelhantes para outros assentamentos como Ceará Mirim, Pau d''Óleo, Taipú etc. Da equipe de professores, muitos foram alunos de Vera Rocha, que desenvolveu o teatro popular em Natal a partir da universidade.

A enorme experiência de Vera Rocha com teatro em comunidades pobres a preparou muito bem para coordenar as disciplinas das artes em outro bem articulado projeto de educação do MST, desta vez com a própria Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Trata-se do curso "Pedagogia da Terra" que tem lugar no Campus Avançado de Santa Cruz, a três horas de Natal, sob a coordenação geral da professora Marta Pernambuco.

MST e universidade sentaram juntos para delinear o programa de habilitação de professores de áreas de assentamento "por meio de curso superior para docência em educação infantil e nas séries iniciais do ensino fundamental regular e para jovens e adultos". O currículo interrelaciona atividades presenciais intensivas e ensino a distância, mas o que impressiona muito é o largo espaço dado às artes.

Há enorme preocupação em ampliar a cultura dos alunos/professores sem menosprezar a cultura que trazem. Valem créditos no currículo, por exemplo, vinte horas de atividades culturais que significam ir a espetáculos teatrais e de dança, ver exposições, assistir vídeos, ir a museus etc, tudo programado em conjunto com o corpo de professores, levando a discussões em grupo posteriormente. Outras vinte horas são dedicadas ao fazer artístico através de três oficinas, entre as quais ficam divididos os sessenta alunos.

Os alunos são indicados pelos líderes dos 1.620 assentamentos dos Estados do Nordeste mas têm de enfrentar o vestibular. Trata-se de alunos/professores que têm de passar por duas peneiras: a do MST e a da universidade.

Além das disciplinas propriamente pedagógicas, o curso não perde de vista as peculiaridades do campo, a questão agrária, o cooperativismo, as características do semi-árido onde vivem, a ecologia, o multiculturalismo.

Em nome deste multiculturalismo, nas atividades artísticas oferecidas para apreciação, se procura interrelacionar o erudito e o popular na articulação interna destes códigos: ver o que há de erudito no popular e vice-versa. Para isto o Nordeste tem grandes mestres, entre eles Câmara Cascudo e Ariano Suassuna.

A dialogicidade de Paulo Freire articula disciplinas, ações, teoria e prática além de se instituir como a metodologia dominante do curso.

Foi lá no Rio Grande do Norte que Paulo Freire no início dos anos 60 sistematizou sua pedagogia e de lá está vindo esta resposta alvissareira. Há mais cinco cursos em outras universidades em parceria com movimentos sociais, mas nenhum deu tanto espaço para as artes como o da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

As universidades públicas começam a ser mais flexíveis podendo gerar diferentes modelos de ensino além dos modelos europeus e norte-americanos que nos dominam. Estão criando cursos para atender a reais demandas sociais, escapando, portanto, da ditadura da demanda de mercado que vem dominando o setor há alguns anos.

A Universidade de São Paulo está dando um grande passo no sentido de responder às necessidades sociais com a criação do Campus Leste, mas tem o seu estatuto como entrave porque este não permite duplicação de cursos. Como a USP já tem curso de medicina dificilmente vai ser possível criar outro na Zona Leste, onde cursos ligados à área de Saúde estão se mostrando os mais necessários e são requeridos pelo Movimento dos Sem Universidade.

Também estão sendo pedidos cursos de artes. Espero que os dirigentes da USP percebam que só o código europeu e norte-americano branco habita os currículos de artes já existentes na USP e que se disponham a criar outros cursos de artes com características diferentes no Campus Leste. Não estou falando de cursos de artes para pobres mas cursos multiculturais de arte como são multiculturais as disciplinas de artes do curso Pedagogia da Terra da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.


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