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15/05/2003 Undime

Educadora e mulher de Paulo Freire fala da atualidade da obra do maior mestre brasileiro

Pedagogia do encantamento

Este mês, completam-se seis anos da morte de Paulo Reglus Neves Freire. Nascido em Recife (PE), Paulo Freire foi o mais importante educador brasileiro. Seu trabalho revolucionou a alfabetização de adultos, é reconhecido como um dos mais significativos do mundo e rendeu 37 títulos, traduzidos para dezenas de idiomas, como alemão, chinês e japonês. Mas o que ainda atrai milhares de seguidores e fãs é o fato de seu pensamento permanecer tão atual quanto na época da publicação de seu  primeiro livro, A Educação como prática da liberdade (1967). Apesar das muitas teses e obras sobre o legado de Paulo Freire, poucos sabem da influência da vida íntima na construção de sua pedagogia.

Filho de família pobre, quando criança Paulo Freire queria ser cantor ou professor. Começou a dar aulas aos 21 anos. Nunca mais parou. Durante os anos de chumbo da ditadura, teve de ficar 15 anos fora do país. Seu crime: alfabetizar para a conscientização e participação política na sociedade.

Quando retornou ao Brasil, sua obra já era conhecida em muitos países. "Paulo sempre foi aquele que tocava na cabeça, no ombro, que abraçava as pessoas. Era um homem calmo, que fazia as coisas sem pressa, a seu tempo", recorda a pedagoga Ana Maria Araújo Freire, com quem o educador se casou em 1988, aos 66 anos. Ana Maria – a Nita, como gosta de ser chamada – é doutora em educação pela PUC-SP e herdeira legal da obra freireana. Leia abaixo a entrevista que ela concedeu à Educação.
 
Revista Educação – Como você conheceu Paulo Freire?
Ana Maria Araújo Freire – Lembro de Paulo Freire quando eu tinha 4 anos. Meu pai, Aluízio Pessoa de Araújo, era dono e diretor de uma escola particular em Recife, o Colégio Oswaldo Cruz. Em Jaboatão [PE], onde Paulo vivia, não havia escola secundária. Então, quando ele acabou os estudos primários, a mãe dele foi até a escola de meu pai para pedir uma bolsa de estudos. Ele tinha um trânsito grande pelo colégio de meu pai. Em 1942, um professor de português foi morar no Rio de Janeiro e indicou Paulo Freire para preencher a vaga. Paulo estava no segundo ano do pré-jurídico, antes do antigo Clássico e Científico. Tinha 21 anos quando começou a dar aulas. Lembro-me perfeitamente da figura dele andando pelos corredores da escola. Era um homem muito magro e carinhoso. Paulo sempre foi aquele que tocava na cabeça, no ombro, que abraçava as pessoas. Era um homem calmo, que fazia as coisas sem pressa, a seu tempo.
 
O reconhecimento da obra freireana é maior no Brasil ou no exterior?
Acho que, mesmo hoje, o reconhecimento do trabalho de Paulo ainda é maior no exterior. A obra dele ganhou uma dimensão tão grande que não se sabe quanto já foi publicado a seu respeito. Só em língua inglesa já foram identificados mais de 5 mil livros sobre Paulo Freire. Há traduções de suas obras para as mais diversas línguas. Antes de nos casarmos, ele já havia publicado mais de 30 livros. depois, foram sete.
 
O pensamento de Paulo Freire ainda continua atual?
Sim, claro. Aliás, Frei Betto vem demonstrando a importância do trabalho de Paulo Freire nos dias de hoje. Paulo não queria só uma escola de qualidade, desejava um mundo mais democrático, mais tolerante, menos preconceituoso. O Brasil não seria este que conhecemos hoje – mais aberto ao novo e acreditando que a esperança faz parte da condição humana – se não fosse o trabalho de Paulo Freire nos anos 50. Fico imaginando como ele veria essa guerra horrorosa que inaugura o século. Essa globalização que só está servindo para que um país não tenha escrúpulo e pudor de destruir um patrimônio construído por milênios.

E no que diz respeito à educação? A obra de Paulo Freire perdeu contexto?
Não, de jeito nenhum. Não vejo o que da prática ou teoria freireana se possa jogar fora. O Brasil mudou bastante, mas em muitos pontos permanece igual. Ele dizia: "Não existem ignorantes. Existem aqueles que não foram à escola, mas que têm um saber a partir de seu cotidiano." Paulo sempre foi o homem do diálogo, não pregava pegar em armas. Para ele, revolução era o novo, era uma sociedade nova, na qual a educação teria muito que contribuir para um mundo melhor, mais democrático, justo e bonito. Paulo Freire pensou nas mudanças, nas transformações da sociedade. Se dizia "biófilo", não "necrófilo", pois fazia questão de estudar as coisas vivas.
 
Essa visão prevaleceu na construção do pensamento freireano, não?
Sim, em toda a sua obra. Paulo se perguntava: "Por que matar?" Para ele, matar em nome da democracia era a maior incoerência que se poderia imaginar. Uma vez, vimos um filme em que um homem perguntava a uma mulher o que ela salvaria de um incêndio: um gato ou um quadro. Era um quadro famoso, de Van Gogh, Rembrandt, não me lembro. Paulo disse para mim: "Eu salvaria o gato, não importa que quadro fosse. Porque ele tem vida." Essa visão de respeito, dignidade e tolerância sempre esteve presente na vida de Paulo Freire. O corpo dele "pedagogizava", tal era a postura ética de coerência com o que ele pensava, falava e fazia.
 
O que Paulo Freire propôs de tão inovador na alfabetização de adultos?
Paulo dizia que pedra não fala, móvel não fala, árvore não fala. Somos os únicos seres no mundo que falamos. Ora, a vida em sociedade exige que se fale e, como conseqüência, que se leia e escreva. A pessoa que não lê teve roubada uma parte ontológica de seu ser. É como se não tivesse braços ou pernas. Por "ontológico" entenda-se algo que é genuinamente humano. Todo o trabalho de Paulo Freire foi no sentido de buscar o que é essencialmente humano, o que está no cerne do homem. É por isso que os ensinamentos de Paulo não envelhecem, porque esse cerne o contexto histórico não destrói.
 
O humanismo influenciou a obra de Paulo Freire?
Totalmente. A literatura dele trata justamente do humanismo, da esperança, de resgatar a ontológica condição humana. Nós sabemos que sabemos. Passarinhos, cachorros, leões, eles sabem – caçam, se defendem –, mas não têm consciência disso.

Como a política interferiu no trabalho de Paulo Freire?
Paulo achava que aprender é um trabalho coletivo. Foi assim que ele aprendeu e é assim que nós aprendemos. Todo aprendizado está no exercício intelectual de observar, intuir, verificar e apreender. Esse é o caminho do pensamento, o processo que cada um constrói. Paulo Freire levou para o construtivismo o componente político que, segundo ele, faz parte do ato de educar e aprender.
 
Como você enxerga a crise educacional que o Brasil vive hoje?
O problema é que os discursos políticos são sempre a favor da educação, mas as práticas não são sempre coerentes com os discursos.

Onde a senhora acha que a escola está errando?
A formação do professor primário, no Brasil, vem sendo cada dia mais deficiente. Temos muitas crianças matriculadas, mas não houve a preocupação com a qualidade da educação. No meu tempo de primário tinha ditado todo dia, tinha de fazer redação todo dia, tinha de ler todo dia. A escola pública foi de qualidade até os anos 50, 60. Professor ganhava bem, era respeitado, era gente de classe média que tinha acesso a livros, estudos, viagens. Hoje, o professor é treinado para dar aulas. Paulo tinha horror a essa palavra, "treinamento", que passa uma noção de condicionamento. Hoje, ensinar a pensar está sendo feito mecanicamente, tecnicamente. Sabe quando uma criança quebra um brinquedo para saber como funciona? A escola de hoje destrói essa curiosidade. Você tem de saber a razão de ser das coisas. A escola mata o que deveria estimular: não há educação sem curiosidade.


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