12/06/2018 Undime
Em maio deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) voltou a colocar em pauta a constitucionalidade do corte etário para ingresso na Educação Infantil e no Ensino Fundamental.
Atualmente, os documentos oficiais de Educação estabelecem as idades mínimas de 4 e 6 anos completos até 31 de março para matrícula na Educação Infantil e Ensino Fundamental, respectivamente.
Duas ações contra o corte etário estão sendo julgadas em conjunto pela Corte. A controvérsia está em definir se a criança precisa ter 4 ou 6 anos completos no início do ano letivo, ou se basta que a idade seja completada até dezembro do ano de ingresso.
Para além de argumentos técnicos e jurídicos, o que está verdadeiramente em disputa é a concepção de infância no Brasil.
“Antecipar a matrícula é roubar um ano da infância em função de uma escolaridade que aconteceria de qualquer maneira”, diz Vital Didonet, educador e assessor legislativo da Rede Nacional pela Primeira Infância.
Isso porque, na maior parte das vezes, explica o especialista, o Ensino Fundamental falha em oferecer uma educação integral, que enxerga as crianças como sujeitos multidimensionais durante os processos de ensino-aprendizagem.
Cisele Ortiz, coordenadora adjunta do Instituto Avisa Lá, concorda: “o Fundamental ainda não percebeu que a postura do aluno e a cultura escolar precisam ser construídas, elas não vêm de uma vez”.
Se da maneira como as regras estão estabelecidas hoje os alunos passam por uma mudança abrupta ao ingressar no primeiro ano do Ensino Fundamental, realizar essa transição aos 5 seria ainda mais nocivo. Antes de 2009, essa mudança só ocorria quando se completava 7 anos. Se o STF entender que a redução é constitucional, em menos de uma década o Brasil terá diminuído a infância em dois anos.
“As crianças de 5 anos ainda estão em um ciclo de formação humana em que não cabem as características do Ensino Fundamental, que se estrutura de forma mais competitiva, tem avaliação, e a organização do espaço é mais rígida. Isso não é adequado para essa idade. E mesmo com as mais velhas nós deveríamos trabalhar a partir de uma perspectiva mais lúdica e flexível”, diz Rita Coelho, educadora especialista em primeira infância.
Mas enquanto a escola não se transforma, é preciso garantir que as crianças possam viver, ao menos, seus 6 primeiros anos conforme as características desta etapa de vida.
E perder um ano dessa infância pode acarretar diversas consequências. De imediato, o desinteresse pela escola, uma queda na capacidade de aprendizagem e, principalmente, a diminuição das oportunidades dos pequenos desenvolverem suas potencialidades.
“Estes 6 anos tentam garantir que aproximadamente todas as crianças tenham desenvolvidos suas habilidades motoras, orais, a imaginação e brincado muito”, explica Cisele.
A médio e longo prazo, os efeitos também podem aparecer como repetência ou dificuldades para ingressar no Ensino Superior, sobretudo porque os que não forem reprovados terão que escolher suas profissões com um ano a menos.
“O IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] fez uma análise do PISA [Programa Internacional de Avaliação de Estudantes] e mostrou que as crianças que frequentaram a pré-escola por dois anos se saem melhor. A Fundação Carlos Chagas também desenvolveu uma pesquisa que relaciona inadequação da matrícula com um pior desempenho. Estes são alguns estudos que indicam que não há nada de positivo em acelerar o ingresso na escola”, diz Rita.
As consequências do corte etário na pré-escola
E se as consequências poderão aparecer lá na frente, é preocupante também a outra ponta, quando crianças de 3 anos poderão frequentar a pré-escola, dependendo do resultado do julgamento do STF.
“Diferentemente da creche, a criança é obrigada a frequentar a pré-escola, e com tão pouca idade essa imposição pode tomar o lugar do prazer de brincar e interagir com outras criança”, diz Vital.
Rita lembra que embora haja uma luta para que a pré-escola seja um lugar de bem-estar, de brincadeira, exploração e contato com múltiplas linguagens, ela não é tão flexível e integral quanto à creche, e exige mais disciplina.
Para a especialista, este é um sintoma de uma sociedade que quer acelerar tudo. “Tudo está sendo antecipado no nosso cotidiano, e isso tem efeitos em todos, antecipando a sexualidade, a adolescência, e agora a escolarização”, diz.
Salomão Ximenes, educador e professor em Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC), explica que parte desse processo teve início nas escolas particulares que, interessadas em captar clientela, orientavam os responsáveis a entrar com um processo na Justiça para conseguir a matrícula. Isso foi se ampliando com decisões favoráveis.
“As famílias não precisam antecipar o ingresso dos filhos nas escolas achando que terão alguma vantagem. Pelo contrário, podem até ter perdas. Não tem por que ter pressa em desenvolvê-las, isso vai acontecer naturalmente”, alerta Cisele.
O Judiciário e o campo educacional
Salomão explica que as questões de caráter pedagógico do ensino só podem ser decididas no Judiciário se houver nas medidas administrativas uma ilegalidade ou inconstitucionalidade flagrantes. Mas este não é o caso.
“Trata-se de um preferência de interpretação, então não cabe ao Judiciário decidir isso quando o corte etário foi definido por quem tem capacidade técnica para isso, com argumentos pedagógicos, que é o Conselho Nacional de Educação (CNE)”, diz o professor da UFABC.
Durantes os julgamentos do STF acerca da matéria, os ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso também questionaram a capacidade técnica da Corte para decidir sobre o assunto.
Vital reforça que o CNE se utilizou de diretrizes pedagógicas, baseadas na prática e na experiência educacional e dos processos desenvolvimento da criança para decidir pelo corte etário aos 6 anos completos até 31 de março. “Ir contra isso é forçar a criança a um processo que violenta sua estrutura psicológica”.
“Já temos um Congresso que quer legislar a Educação. Se tivermos um Judiciário assim, será ainda mais grave”, alerta Rita Coelho.
Entenda o andamento do julgamento
Até a última sessão de julgamento do corte etário, em 30 de maio, o placar ficou empatado com 4 votos a favor do corte etário e 4 votos a favor de que a criança possa completar 4 ou 6 anos ao longo do ano letivo. Faltam votar a presidente do STF Cármen Lúcia, e os ministros Celso de Mello e Marco Aurélio, que interrompeu o julgamento pedindo vista dos processos. Ainda não há previsão de quando o assunto voltará à pauta.
Por um lado, a Procuradoria-Geral da República, autora de uma das ações, argumenta que o corte etário restringe o acesso de crianças à educação básica e gratuita. Isso porque ao determinar que a educação infantil deva ser ofertada dos quatro até os cinco anos de idade, as crianças só devem concluir esta etapa aos seis anos, e isso seria uma afronta à Constituição Federal.
Para o ministro Alexandre de Moraes, o corte etário estimula a concessão de liminares que garantiram aos pais com filhos em escolas particulares a dispensa do cumprimento da regra. “Seis anos é um critério razoável. A partir disso, março, abril, junho, setembro, é uma discricionariedade não razoável que fere a isonomia”, afirmou Moraes.
Por outro lado, os ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso ressaltaram que o Judiciário não tem capacidade técnica para decidir sobre a matéria. Barroso também afirmou que se a maioria das crianças passarem a ingressar no ensino fundamental não mais com 6 anos, mas com 5, “será preciso mudar a Base Nacional Comum Curricular porque a capacidade emocional, de aprendizado e de se submeter a uma avaliação de crianças de 5 anos é diferente de crianças de 6 anos”.
Fonte: Centro de Referências em Educação Integral
Em maio deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) voltou a colocar em pauta a constitucionalidade do corte etário para ingresso na Educação Infantil e no Ensino Fundamental. Atualmente, os documentos oficiais de Educação estabelecem as idades mínimas de 4 e 6 anos completos até 31 de março para matrícula na Educação Infantil e Ensino Fundamental, respectivamente. Duas ações contra o corte etário estão sendo julgadas em conjunto pela Corte. A controvérsia está em definir se a criança precisa ter 4 ou 6 anos completos no início do ano letivo, ou se basta que a idade seja completada até dezembro do ano de ingresso. Para além de argumentos técnicos e jurídicos, o que está verdadeiramente em disputa é a concepção de infância no Brasil. “Antecipar a matrícula é roubar um ano da infância em função de uma escolaridade que aconteceria de qualquer maneira”, diz Vital Didonet, educador e assessor legislativo da Rede Nacional pela Primeira Infância. Isso porque, na maior parte das vezes, explica o especialista, o Ensino Fundamental falha em oferecer uma educação integral, que enxerga as crianças como sujeitos multidimensionais durante os processos de ensino-aprendizagem. Cisele Ortiz, coordenadora adjunta do Instituto Avisa Lá, concorda: “o Fundamental ainda não percebeu que a postura do aluno e a cultura escolar precisam ser construídas, elas não vêm de uma vez”. Se da maneira como as regras estão estabelecidas hoje os alunos passam por uma mudança abrupta ao ingressar no primeiro ano do Ensino Fundamental, realizar essa transição aos 5 seria ainda mais nocivo. Antes de 2009, essa mudança só ocorria quando se completava 7 anos. Se o STF entender que a redução é constitucional, em menos de uma década o Brasil terá diminuído a infância em dois anos. “As crianças de 5 anos ainda estão em um ciclo de formação humana em que não cabem as características do Ensino Fundamental, que se estrutura de forma mais competitiva, tem avaliação, e a organização do espaço é mais rígida. Isso não é adequado para essa idade. E mesmo com as mais velhas nós deveríamos trabalhar a partir de uma perspectiva mais lúdica e flexível”, diz Rita Coelho, educadora especialista em primeira infância. Mas enquanto a escola não se transforma, é preciso garantir que as crianças possam viver, ao menos, seus 6 primeiros anos conforme as características desta etapa de vida. E perder um ano dessa infância pode acarretar diversas consequências. De imediato, o desinteresse pela escola, uma queda na capacidade de aprendizagem e, principalmente, a diminuição das oportunidades dos pequenos desenvolverem suas potencialidades. “Estes 6 anos tentam garantir que aproximadamente todas as crianças tenham desenvolvidos suas habilidades motoras, orais, a imaginação e brincado muito”, explica Cisele. A médio e longo prazo, os efeitos também podem aparecer como repetência ou dificuldades para ingressar no Ensino Superior, sobretudo porque os que não forem reprovados terão que escolher suas profissões com um ano a menos. “O IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] fez uma análise do PISA [Programa Internacional de Avaliação de Estudantes] e mostrou que as crianças que frequentaram a pré-escola por dois anos se saem melhor. A Fundação Carlos Chagas também desenvolveu uma pesquisa que relaciona inadequação da matrícula com um pior desempenho. Estes são alguns estudos que indicam que não há nada de positivo em acelerar o ingresso na escola”, diz Rita. As consequências do corte etário na pré-escola E se as consequências poderão aparecer lá na frente, é preocupante também a outra ponta, quando crianças de 3 anos poderão frequentar a pré-escola, dependendo do resultado do julgamento do STF. “Diferentemente da creche, a criança é obrigada a frequentar a pré-escola, e com tão pouca idade essa imposição pode tomar o lugar do prazer de brincar e interagir com outras criança”, diz Vital. Rita lembra que embora haja uma luta para que a pré-escola seja um lugar de bem-estar, de brincadeira, exploração e contato com múltiplas linguagens, ela não é tão flexível e integral quanto à creche, e exige mais disciplina. Para a especialista, este é um sintoma de uma sociedade que quer acelerar tudo. “Tudo está sendo antecipado no nosso cotidiano, e isso tem efeitos em todos, antecipando a sexualidade, a adolescência, e agora a escolarização”, diz. Salomão Ximenes, educador e professor em Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC), explica que parte desse processo teve início nas escolas particulares que, interessadas em captar clientela, orientavam os responsáveis a entrar com um processo na Justiça para conseguir a matrícula. Isso foi se ampliando com decisões favoráveis. “As famílias não precisam antecipar o ingresso dos filhos nas escolas achando que terão alguma vantagem. Pelo contrário, podem até ter perdas. Não tem por que ter pressa em desenvolvê-las, isso vai acontecer naturalmente”, alerta Cisele. O Judiciário e o campo educacional Salomão explica que as questões de caráter pedagógico do ensino só podem ser decididas no Judiciário se houver nas medidas administrativas uma ilegalidade ou inconstitucionalidade flagrantes. Mas este não é o caso. “Trata-se de um preferência de interpretação, então não cabe ao Judiciário decidir isso quando o corte etário foi definido por quem tem capacidade técnica para isso, com argumentos pedagógicos, que é o Conselho Nacional de Educação (CNE)”, diz o professor da UFABC. Durantes os julgamentos do STF acerca da matéria, os ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso também questionaram a capacidade técnica da Corte para decidir sobre o assunto. Vital reforça que o CNE se utilizou de diretrizes pedagógicas, baseadas na prática e na experiência educacional e dos processos desenvolvimento da criança para decidir pelo corte etário aos 6 anos completos até 31 de março. “Ir contra isso é forçar a criança a um processo que violenta sua estrutura psicológica”. “Já temos um Congresso que quer legislar a Educação. Se tivermos um Judiciário assim, será ainda mais grave”, alerta Rita Coelho. Entenda o andamento do julgamento Até a última sessão de julgamento do corte etário, em 30 de maio, o placar ficou empatado com 4 votos a favor do corte etário e 4 votos a favor de que a criança possa completar 4 ou 6 anos ao longo do ano letivo. Faltam votar a presidente do STF Cármen Lúcia, e os ministros Celso de Mello e Marco Aurélio, que interrompeu o julgamento pedindo vista dos processos. Ainda não há previsão de quando o assunto voltará à pauta. Por um lado, a Procuradoria-Geral da República, autora de uma das ações, argumenta que o corte etário restringe o acesso de crianças à educação básica e gratuita. Isso porque ao determinar que a educação infantil deva ser ofertada dos quatro até os cinco anos de idade, as crianças só devem concluir esta etapa aos seis anos, e isso seria uma afronta à Constituição Federal. Para o ministro Alexandre de Moraes, o corte etário estimula a concessão de liminares que garantiram aos pais com filhos em escolas particulares a dispensa do cumprimento da regra. “Seis anos é um critério razoável. A partir disso, março, abril, junho, setembro, é uma discricionariedade não razoável que fere a isonomia”, afirmou Moraes. Por outro lado, os ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso ressaltaram que o Judiciário não tem capacidade técnica para decidir sobre a matéria. Barroso também afirmou que se a maioria das crianças passarem a ingressar no ensino fundamental não mais com 6 anos, mas com 5, “será preciso mudar a Base Nacional Comum Curricular porque a capacidade emocional, de aprendizado e de se submeter a uma avaliação de crianças de 5 anos é diferente de crianças de 6 anos”. Fonte: Centro de Referências em Educação Integral https://goo.gl/g8NnC2